Autonomia: princípio estruturante do conceito de universidade

Em artigo, reitora da UFMG afirma que um projeto de país moderno e soberano está atrelado a instituições com liberdade acadêmica

Uma universidade encontra-se entre os bens mais valiosos do povo de uma cidade, de um estado e de um país por uma variedade de motivos: é lugar no qual se forma a juventude para o exercício das profissões de que necessita a sociedade e para o aprendizado da cidadania plena como direito de todos; é espaço no qual se dá a geração de conhecimento para a humanidade, na busca do bem-estar de todos e todas, e a interação com outros saberes; é lugar para se cultivar o espírito crítico fundado no conhecimento e na liberdade de pensamento, imprescindíveis para a construção de um país soberano, mais justo, fraterno e equânime.

Este ano de 2020 tem grande significado na vida institucional e na história da UFMG: comemoraremos, em 7 de setembro, os 93 anos da Instituição e, de maneira especial, os 90 anos de autonomia da Universidade, completados em 22 de janeiro. É preciso que nos detenhamos nessa efeméride, seu significado, sua importância, lendo-a ao mesmo tempo como conquista e triunfo; é preciso também que a reverenciemos, sobretudo em um momento em que sobre a ciência recai a sombra do descrédito.

Momento mais propício não poderia haver para resgatarmos a memória de nosso primeiro Reitor, Francisco Mendes Pimentel, que, ao se referir à autonomia universitária, afirmou que a Lei Orgânica atribui à Universidade “personalidade jurídica e assegura plena autonomia administrativa e didática […] não podendo ser cúmplice passiva de tiranias”. 

À UFMG foi outorgada “autonomia administrativa, econômica e didática” durante o governo do então presidente da República Washington Luís. Denominada, à época, Universidade de Minas Gerais, a Instituição só veio a ser federalizada em 1949, mas sua autonomia, podemos dizer, foi conquistada em nascedouro, menos de três anos após sua fundação, com base nas quatro faculdades já existentes no Estado: Direito, Medicina, Odontologia, Farmácia e Engenharia. Ratificado pelo Art. 207 da Constituição Federal de 1988, o princípio da autonomia universitária, também presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, aprovada em 1996, sempre esteve no âmago das discussões sobre as universidades modernas e de seu papel constitutivo para o Estado-nação.

As universidades modernas começaram a ser criadas, como parte do processo de invenção do mundo como hoje o conhecemos, há cerca de mil anos e, desde então, espalharam-se, não como epifenômeno, mas como elemento estruturante desse mundo. Como tantas outras instituições, a universidade gradualmente foi ganhando forma, à medida que emergiam as questões definidoras de seu papel em cada sociedade.

Bem cedo, emergiu a questão da autonomia. No desenrolar da recorrente disputa entre o poder da Igreja e o poder imperial, em 1158, um colégio de doutores, formado por docentes da Universidade de Bolonha, foi convidado pelo Imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Frederico I, a apresentar um parecer sobre a legitimidade de sua autoridade. Esse colégio concluiu que a lei romana, cuja aplicação era confiada ao império, seria a única lei legítima. Logo depois, Frederico I promulgou a Constitutio Habita, oficialmente instituindo a universidade como o local em que a atividade intelectual deveria ocorrer livremente, sem a interferência de qualquer outro poder.

Autonomia universitária não é um adendo, um suplemento que pode ser dispensado ou revisado ao sabor de intempéries políticas e ideológicas.

Abordar a autonomia universitária na UFMG e em suas instituições coirmãs demanda o dever e o compromisso com a reflexão crítica permanente. Embora a autonomia universitária faça parte do Comentário Geral nº 13 do Comitê sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, universidades e instituições de fomento e pesquisa em todo o mundo têm sofrido ataques, que vão de interferências nas estruturas de gestão, asfixia financeira, bloqueio de recursos constitucionais, cerceamento da liberdade de cátedra ao silenciamento de acadêmicos, proibição de eventos, entre outras ações. O antidoto é a liberdade, que, em nossas instituições, deve se materializar sob a forma de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, como dimensões interconectadas.

Que a lembrança de 22 de janeiro 1930 nos chegue sob a luz do presente. Façamos o que Pierre Nora, historiador francês, sugere: percebamos a memória como percebemos a vida, carregada por coletivos e, nesse sentido, em permanente transformação, susceptível à dialética da lembrança e do esquecimento, vulnerável a todos os usos e manipulações, sujeita a longas latências e súbitas revitalizações.

No entanto, a ambiguidade que permeia o conceito de memória – como algo estático e dinâmico, simultaneamente – não deve recair sobre a compreensão que fazemos do princípio da autonomia universitária. Autonomia universitária não é um adendo, um suplemento que pode ser dispensado ou revisado ao sabor de intempéries políticas e ideológicas. Ela é basilar, norteadora e capaz de assegurar às universidades e instituições de ensino superior a condição de espaços para a livre discussão e manifestação do pensamento, requisito indispensável para produção de conhecimento e formação de cidadãos e cidadãs, que, por meio da educação, contribuem para edificar a vida em sociedade e fortalecer a democracia.

Do mesmo modo, se entendemos que a autonomia plena se concretiza sob três esteios – a autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial – essas dimensões, inerentes e interconectadas, não podem ser, nenhuma delas, ignoradas ou relativizadas. Contudo, autonomia universitária, não resta dúvida, não é soberania. Enganam-se, é preciso salientar, aqueles que proferem que a autonomia é, no ambiente acadêmico, interpretada como soberania. Nossas instituições de ensino são públicas e prestam contas à sociedade sobre aquilo que realizamos, estão sujeitas às legislações vigentes, às determinações dos conselhos de educação e à fiscalização dos órgãos governamentais. Na UFMG, o princípio da transparência e da integridade é constitutivo do ethos institucional, assim como o é a autonomia universitária.

Sandra Regina Goulart Almeida, reitora da UFMG

Fonte e texto completo: UFMG

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